Miscelânea

Extra, extra! Primeiro de abril na Alemanha!

Por Loren Almeida

Quem disse que os alemães não tem senso de humor? Dia 1.o de abril é a data oficial para brincar com os amigos contando pequenas mentiras ou fazendo "pegadinhas". é uma tradição em vários países, inclusive na Alemanha. Mas aqui a brincadeira me pegou de surpresa, onde eu nunca poderia imaginar.

Todo dia 1.o começa uma nova turma ou módulo no curso de alemão em que estou inscrita. Em abril, minha nova turma se iniciou no Dia da Mentira. Fomos saudados no início da aula por um professor de voz calma, jeito exigente e uma irreverência discreta. Era um senhor engravatado de meia idade, mescla entre uma certa cerimônia e um toque de espirituosidade. Ele nos explicou como seria o andamento do curso, seu conteúdo e ressaltou que teríamos que ler o jornal diariamente para melhorarmos nosso vocabulário e nos familiarizarmos com a estrutura da língua. E distribuiu entre os alunos a pilha que estava em sua mesa.

Ao final da aula, ele nos deixou com a incumbência de procurar a notícia falsa ao ler o Berliner Zeitung, um dos jornais mais respeitados da cidade. Segundo ele, nesta data os jornais na Alemanha lançam uma matéria irreal para entrar no espírito do dia. Deveríamos ler um dos cadernos, a Editoria Cidade, para descobrir qual era a notícia "plantada".

Arregalei os olhos, como todos na minha classe. Acho que poucos se atentaram para a data, mas sim para a tarefa. Ler jornais diariamente (à exceção de tablóides) é hábito pouco difundido mesmo na língua materna. Realizar a tarefa em alemão, com todas suas declinações e inversões transformou-se numa tarefa homérica.

Mas meus olhos se alarmaram também para um outro fato: o professor fazendo uma pegadinha? Era um artifício para despertar a curiosidade nos alunos e aumentar o interesse na matéria, com certeza. Não consegui imaginar um jornal da República Federal da Alemanha, um país famoso por sua precisão, impessoalidade e formalidade "brincar" de 1.o de abril. O jornal é um veículo de comunicação que se destina a ser fiel à realidade. E espaço custa dinheiro. Esse é um outro tema que não se brinca, em especial nessas terras daqui.

Mas de certa forma nao combinava com o jeito sério do meu professor nos pregar uma peça. Por via das dúvidas, preferi não arriscar. Sentei-me com o dicionário à mão para descobrir a matéria de fundo inexistente.

Passei os olhos pelo caderno e não vi nenhuma notícia... hum... esquisita. Mas resolvi tirar a prova dos nove: perguntei a um alemão se a informação que tive na escola procedia. Ele respondeu positivamente, o que aumentou a minha perplexidade. E completou que ao ler o jornal hoje (por azar, diferente do meu) leu uma notícia que lhe causou estranheza. Mas ele não pensou muito sobre o assunto até o momento em que eu lhe chamei a atenção para a data. E chegou à conclusão que o jornal que ele leu conseguiu enganá-lo.

No caso dele, a notícia referia-se a um bônus a ser dado para quem comprasse uma nova bicicleta. Para entender essa pegadinha, é preciso ver o contexto atual na Alemanha. A crise financeira é o assunto principal de todos os meios de comunicação daqui. A indústria automobilística alemã a foi uma das áreas mais afetadas e o governo, para fomentar o consumo, oferece 2.500 euros para os proprietários que trocarem seus carros antigos por modelos recém-produzidos. Mas além da indústria automobilística, a Alemanha poderia ser considerada o país das bicicletas, depois da China, claro. Em todas as cidades, grandes e pequenas, o trânsito é dividido entre condutores de veículos, pedestres e ciclistas. Por isso, o jornal brincou com o tema do bônus (aqui conhecido como Abwrackprämie) em relação ao outro elemento mais encontrado no tráfego: as bicicletas. Mas por enquanto a indústria das bicicletas não precisa ser salva pelo governo.

Tendo a constatação que o pândego nesta história não era meu professor, voltei à minha tarefa. Achei que o chiste fosse uma matéria sobre a conservação do Muro de Berlim. Esse é um assunto já tão cantado em verso e prosa e especialmente nessa cidade, tão em voga, que pensei estar ali a razão das minhas pesquisas.

No dia seguinte, fui procurar no Editorial alguma informação sobre a edição passada. Encontrei o gabarito na Carta dos Leitores. Alguns parabenizaram o jornal por ter conseguido enganá-los como há muito tempo não acontecia. Já uma leitora achou o tema de mau gosto. Ficou curioso para saber qual era o assunto?

A "notícia" falava de uma iniciativa de alguns pais de alunos de um dos bairros mais abastados em ajudar a crianças e adolescentes do bairro de maior incidência de problemas sociais a manterem-se na escola até o fim do segundo grau. A ajuda acontecia de forma inusitada: as famílias privilegiadas buscariam os alunos em casa com seus carrões e os levariam à escola. Em alguns casos, os estudantes permaneceriam na casa dos seus "padrinhos" após a aula, para tomar a lição ou ajudá-los em eventuais pontos pendentes. Ou seja, as crianças se beneficiariam com o que lhes faltava em casa. Se fizéssemos um paralelo com o Rio de Janeiro, seriam moradores de Ipanema e Vidigal juntos.

Vale ressaltar que essa não era uma matéria escondida lá pela quinta página. Era matéria de primeira página do Caderno Berlin. E uma matéria grande, com bastante informação, dados, nomes dos personagens, fatos. Tudo saído da cabeça dos jornalistas.

Nunca imaginei um primeiro de abril oficioso. No Brasil isso se passa no convívio íntimo, no círculo de trabalho, enfim. Mas confesso que gostei e dei boas gargalhadas ao ler o texto e ver a foto. E acredite: não estou pregando uma peça em você. Este texto não é uma pegadinha de primeiro de abril.




A tradução da chamada é:Serviço de Condutores para a Conclusão do Ensino Médio
País de Zehlendorf (bairro abastado) iniciam patrocíno para a formação de crianças de Neukölln (bairro problemático)



A segunda imagem é do jornal do dia seguinte, com a carta dos leitores (Leserstimmen = Voz dos leitores). Os três primeiros artículos são referentes ao primeiro de abril. O primeiro "Nette Idee" significa boa idéia. O leitor gosta da fantasia, mas acha impossível torná-la real. O segundo "In April geschickt" significa "Cair no Primeiro de Abril". Esse já parabeniza a brincadeira e diz que há tempos não caía numa pegadinha de jornal, achou essa bem feita.E começa a filosofar como se fosse realmente verdade e acha que o pessoal de Zehlendorf é um povo esnobe. Já a última escreve "Auf wessen Kosten", que é "às custas de quem". Ela achou a brincadeira de mau gosto ao ser feita às custas daqueles que tem menos oportunidades.