Artigo

Percepções da Sexualidade: Anime e Mangá

Escrito por Eduardo Peret

haruka michiruDesde meados do século XX (especialmente após a Segunda Guerra Mundial e a crescente aproximação entre o Japão e o Ocidente), é difícil falar da cultura japonesa contemporânea sem citar dois importantes produtos midiáticos: o mangá (história em quadrinhos) e o anime (desenho animado). Como acontece com  outros produtos culturais que são apropriados por culturas estrangeiras, as duas denominações e seus derivados têm diferentes significados, dependendo do ponto de vista de quem as usa.

Para os japoneses, “mangá” se refere a qualquer história em quadrinhos; para nós, o termo começou a ser usado para se referir apenas aos quadrinhos produzidos no Japão – e, mais recentemente, à estrutura editorial e ao estilo da linguagem (ou conjunto de códigos) desse grupo de quadrinhos, sejam eles de autoria japonesa ou de outra nacionalidade (inclusive brasileira).

Da mesma forma, o termo “anime” se refere, no Japão, a qualquer desenho animado, independentemente da origem. Para nós, contudo, esse nome só designa os desenhos produzidos no Japão, ou que tenham suas características estruturais e códigos de linguagem.

Caracterizam a estrutura do mangá, principalmente: o formato de leitura da direita para a esquerda, o uso intenso de preto-e-branco ou duas cores, a edição dividida em grandes volumes semanais ou mensais. As narrativas de mangá diferem bastante das HQ norte-americanas, em especial pelo fato de que seus personagens crescem, envelhecem e morrem, mesmo os que fazem mais sucesso. Cada história é única e, mesmo que ganhe uma continuação em outra revista, os mesmos protagonistas raramente participam da nova história por muito tempo.

Os códigos próprios de linguagem do mangá e do anime incluem: o tamanho e formato dos olhos; a proporção entre cabeça, corpo, braços e pernas; os artifícios de imagem usados para dar expressão emotiva aos personagens têm códigos próprios que são facilmente reconhecíveis: rubor nas faces (interesse romântico), gota d'água ao lado do rosto (constrangimento), olhos esbugalhados e dentes pontiagudos (ataque de raiva), nervos estilizados na testa (raiva) etc.

A relação entre o mangá e o anime tal como os conhecemos parte de uma base histórica comum: o mangá (cujas origens remontam aos rolos de pintura chamados emakimono do século VIII) teve sua estrutura e linguagem atuais desenvolvidas na década de 40, com os trabalhos de Osamu Tezuka. Grande fã de Walt Disney, ele começou a desenhar para um jornal escolar em 1946 e, no ano seguinte, lançou Shin Takarajima (“Nova Ilha do Tesouro”), em formato livro, baseado na história de Sakai Shichima, que acabou vendendo 400.000 cópias. Em 1950, ele lançou Jungle Taitei (conhecido no Brasil como “Kimba, o Leão Branco”) e, em 1952, Tetsuwan Atom (“Astro Boy”). Em 1961, surgiu o Tezuka Osamu Production, mais tarde renomeada Mushi Production, estúdio responsável pela produção de animes a partir dos mangás Astro Boy (1963) e Kimba (65), que se tornaram ícones históricos da animação japonesa. Em 1967, com o lançamento de Mahha Go Go Go (“Speed Racer”), Ribbon no Kishi (“A Princesa e o Cavaleiro”) e Ogon Batto (“Fantomas”), o anime conquistou seu espaço no mercado ocidental. Curiosamente, o mangá (que já era conhecido por aqui desde a década de 80) só começou a fazer sucesso em grande escala no Brasil bem depois do anime e por influência direta deste, em torno do ano 2000.

Um dos aspectos mais interessantes da bem-sucedida disseminação dos animes e mangás em território nacional é justamente o conjunto de diferenças de percepção que nós, brasileiros, temos em relação ao que foi originalmente pensado pelos criadores desses produtos. Tais diferenças respondem por parte do fascínio que o anime e o mangá exercem na população consumidora.

Historicamente, o Brasil teve uma produção doméstica de quadrinhos relativamente pequena (e quase inexistente na área de desenhos animados), em geral voltada para temas nacionais e cotidianos (destacando-se Maurício de Souza, cujo trabalho tem um caráter primariamente infanto-juvenil, além de Ziraldo, Henfil e, há alguns anos, Miguel Paiva), com pouquíssimo espaço para temas como ficção científica, romance, aventura épica – e menos ainda para sexo e outros temos considerados “adultos”. Por isso, nossas principais referências por várias décadas foram os quadrinhos e desenhos norte-americanos, cuja produção também foi, por muito tempo, voltada para o público mais jovem. As graphic novels (romances e seriados em quadrinhos de excepcional qualidade visual, com temática adulta, incluindo política, sexo e violência gráfica) só começaram a circular por aqui em versões traduzidas a partir da segunda metade dos anos 80, na mesma época em que algumas séries japonesas (como Jaspion e Changeman) fizeram grande sucesso na TV brasileira e poucos anos antes que os primeiros animes seriados de longa duração (como Cavaleiros do Zodíaco) fossem lançados por aqui.

Por conta da influência, demoramos algum tempo para absorver com clareza alguns aspectos da produção japonesa. Outras características ainda são percebidas de forma diferente (como veremos a seguir), chegando a criar interpretações completamente diversas daquelas pretendidas quando da criação desses materiais.

Um dos equívocos culturais mais comuns e que, ocasionalmente, ainda provoca estranhamentos (e censuras e cortes nos produtos por parte de emissoras), é a idéia geral de que “quadrinhos e desenhos são feitos para crianças”. No Japão, só uma parcela da produção gráfica é voltada para o público infanto-juvenil – e, mesmo assim, pode abordar alguns temas que são considerados “problemáticos” no Brasil.

Um exemplo disso é a presença comum de sangue em desenhos notoriamente infantis: para os japoneses, as crianças (acostumadas a sofrer tombos, cortes e outros machucados comuns nas brincadeiras diárias) não sentiriam desconforto ao ver personagens com galos, cortes e hematomas. Na cultura ocidental de quadrinhos e animação, entretanto, sangue e machucados são raridades, o que causa entraves culturais – e já levou mecanismos oficiais de censura a recomendar determinados produtos para faixas etárias bem mais altas do que no Japão, enquanto nossas emissoras de TV aberta podem até cortar cenas consideradas “chocantes”.

Outro “problema” do ponto de vista ocidental é a “sensualidade” – ou melhor, o que é visto como sensual. Aqui, a nudez, mesmo que parcial ou sugerida, foi por muito tempo considerada “pornográfica” e pesadamente censurada (note-se a forte influência católica até depois do fim da Ditadura, seguida pela rápida ascensão das igrejas neopentecostais nos anos 90). A cultura japonesa encara alguns aspectos da nudez com muito mais naturalidade e tolerância, de tal modo que os adolescentes não passam por esse tipo de censura da mesma forma que aconteceu aqui. Não é que o povo japonês seja necessariamente “mais liberal” do que nós; é que as regras culturais são outras.

Clique aqui para baixar o arquivo na íntegra.

Referências

Gomes, Marcus Vinicius. Crise econômica no Japão pode trazer até 30 mil dekasseguis de volta ao Brasil, 19-02-09.Especial para o UOL Notícias. Disponível em: noticias.uol.com.br. Acesso em 28-02-09.

Paiva, Natália.Japão demite ao menos 50 mil brasileiros. 22-02-09. disponível em folha.uol.com.br.
Acesso em 28-02-09.